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anteS, durante e dePoIS 101
tícia que já tivesse chegado. Se me acontecia passar pelo sono, o simples toque
do telemóvel da minha mulher era suficiente para me fazer acordar sobressaltado.
Na tarde do dia 17, tendo chegado a casa depois de gastar o tempo que
pude a percorrer (olhando, quase sem ver) o Alvaláxia, o centro comercial ane-
xo ao estádio do Sporting, constatei que ainda não havia notícias. Movido por
um pressentimento, dirigi-me para o corredor que dá acesso ao nosso quarto. A
minha mulher atendia o telemóvel, voltada de costas para o quarto e ouvindo o
que lhe contavam. Foi então que, apercebendo-se da minha presença, a minha
mulher disse: «Não vale a pena; ele está aqui e já percebeu tudo». Foi assim que
soube de vez o que afinal já sabia…
Depois de saber a verdade, porém, a angústia foi substituída por uma qua-
se inexplicável serenidade, embora entrecortada por momentos de muita tristeza.
Foi então que me apercebi da urgente necessidade de «matar o tempo» antes que
ele me matasse a mim… E tomei a decisão de escrever um livro.
É fácil explicar as razões de tal decisão. Por um lado, proporcionava-me
uma ocupação digna e útil, que, de algum modo, me distrairia das previsíveis
agruras da doença. Por outro, pensava ter coisas interessantes e até importantes
para contar. Acontecesse o que acontecesse, ficaria um trabalho que poderia –
no mínimo – ser de interesse para a minha família e para os meus amigos; além
de me ajudar a viver com dignidade os dias maus que se avizinhavam. Também
pode ter pesado nessa decisão o desejo egoísta de deixar um testemunho para
além da minha morte (qualquer que fosse a data em que ela chegasse). Terei
ponderado ainda que, um dia, quando já cá não estivesse, poderia deixar aos
meus netos (que hão de nascer) o meu «conto», a história da minha vida; e eles,
mesmo que nunca me tivessem chegado a conhecer, poderiam assim «ouvir»,
lendo-as, as minhas palavras.
Decidi escrever um pouco todos os dias, sem pressas, na convicção de
que é sempre possível correr contra a morte. Estava de certo modo convicto de
que quem escreve e o seu leitor têm a vida mais longa do que as outras pessoas,
porque não morrem enquanto tiverem um livro para acabar… E, como obser-
vou Rosa Montero, «a morte também é leitora, por isso aconselho a que andem
sempre com um livro na mão, porque quando a morte chega e vê o livro, es-
preita para ver o que estamos a ler, tal como eu faço no autocarro, e distrai-se».
Boa ideia!
O meu livro começa assim: «Foi por meados de 1996 que senti que a mi-
nha voz estava a perder capacidade de projeção…». Tinha, até então, uma voz