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                     Cito mais um pequeno texto, retirado dos meus cadernos, que se refere
               concretamente ao encortiçamento e à dormência dos tecidos, ao edema da pa-
               pada e à sensação de garrote no pescoço: «Mexer (ou tocar) na barbela é pés-
               simo. Parece um bocado de madeira, de carne encortiçada. Quanto mais perto
               das orelhas…». Referia-me também à perda da antiga sensibilidade no pescoço
               e nas orelhas, bem como à necessidade de «reciclar» a localização das festas e
               das carícias. Mas tudo isto acaba por ser um conjunto de sinais menores, que o
               tempo e a esperança nos ajudam a superar. Todos esses sintomas viriam a so-
               frer um agravamento sensível na sequência das sessões de radioterapia. Depois
               de ter sido retirada a sonda nasogástrica (de tão desagradável memória) e de
               ter sido realizado o «teste do leite» (para confirmar que a prótese que me fora
               colocada vedava adequadamente a passagem de líquidos), escrevi o seguinte,
               por exemplo: «A Cerelac comida pela boca foi um manjar celestial!». Referia-me
               naturalmente à primeira refeição comida depois de 15 dias em que a ingestão
               de alimentos foi realizada através da sonda. Também escrevi sobre as dificul-
               dades sentidas na deglutição e acerca do que designei «reeducação dos maxila-
               res». Assim, encontro observações como a que passo a transcrever: «A própria
               alimentação pela boca é difícil: tenho de engolir pequenas porções e há baru-
               lhos e arrotos».
                     Quando, no dia 14 de setembro, o Dr. Hugo me retirou os primeiros agra-
               fos e pontos, perguntei­lhe por escrito: «E vai doer muito?». Ao que o meu médi-
               co respondeu com humor: «Não dói nada, porque, quando lhe tirar o primeiro
               ponto, o Senhor desmaia e já não sente mais nada!».
                     Não posso deixar de relatar um episódio particularmente relevante e sim-
               bólico, que coincidiu com o termo desta fase. Já estando eu com a minha nova
               prótese fenestrada, de silicone, o Dr. Hugo tamponou-me o estoma com uma
               compressa e ordenou: «Diga bom dia». E eu disse! Ao que ele observou: «Vê como
               fala?». Confesso que me comovi… Na verdade, não fui capaz de evitar uma re-
               ação emotiva. Foi um momento com especial significado, dadas as perspetivas
               que acabavam de se abrir para o resto dos meus dias.
                     Era a fala que se anunciava. A voz – esse dom que faz dos humanos se-
               res sociáveis e comunicativos – deixava de ser um sonho ou uma miragem, e
               podia voltar a fazer a sua aparição para me fazer mais feliz. Com muita força de
               vontade, com avanços e recuos, com a ajuda de muitas pessoas competentes
               e com boa vontade, senti nesse momento que poderia voltar a ser um homem
               mais realizado.
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