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106 Quero, logo falo
Cito mais um pequeno texto, retirado dos meus cadernos, que se refere
concretamente ao encortiçamento e à dormência dos tecidos, ao edema da pa-
pada e à sensação de garrote no pescoço: «Mexer (ou tocar) na barbela é pés-
simo. Parece um bocado de madeira, de carne encortiçada. Quanto mais perto
das orelhas…». Referia-me também à perda da antiga sensibilidade no pescoço
e nas orelhas, bem como à necessidade de «reciclar» a localização das festas e
das carícias. Mas tudo isto acaba por ser um conjunto de sinais menores, que o
tempo e a esperança nos ajudam a superar. Todos esses sintomas viriam a so-
frer um agravamento sensível na sequência das sessões de radioterapia. Depois
de ter sido retirada a sonda nasogástrica (de tão desagradável memória) e de
ter sido realizado o «teste do leite» (para confirmar que a prótese que me fora
colocada vedava adequadamente a passagem de líquidos), escrevi o seguinte,
por exemplo: «A Cerelac comida pela boca foi um manjar celestial!». Referia-me
naturalmente à primeira refeição comida depois de 15 dias em que a ingestão
de alimentos foi realizada através da sonda. Também escrevi sobre as dificul-
dades sentidas na deglutição e acerca do que designei «reeducação dos maxila-
res». Assim, encontro observações como a que passo a transcrever: «A própria
alimentação pela boca é difícil: tenho de engolir pequenas porções e há baru-
lhos e arrotos».
Quando, no dia 14 de setembro, o Dr. Hugo me retirou os primeiros agra-
fos e pontos, pergunteilhe por escrito: «E vai doer muito?». Ao que o meu médi-
co respondeu com humor: «Não dói nada, porque, quando lhe tirar o primeiro
ponto, o Senhor desmaia e já não sente mais nada!».
Não posso deixar de relatar um episódio particularmente relevante e sim-
bólico, que coincidiu com o termo desta fase. Já estando eu com a minha nova
prótese fenestrada, de silicone, o Dr. Hugo tamponou-me o estoma com uma
compressa e ordenou: «Diga bom dia». E eu disse! Ao que ele observou: «Vê como
fala?». Confesso que me comovi… Na verdade, não fui capaz de evitar uma re-
ação emotiva. Foi um momento com especial significado, dadas as perspetivas
que acabavam de se abrir para o resto dos meus dias.
Era a fala que se anunciava. A voz – esse dom que faz dos humanos se-
res sociáveis e comunicativos – deixava de ser um sonho ou uma miragem, e
podia voltar a fazer a sua aparição para me fazer mais feliz. Com muita força de
vontade, com avanços e recuos, com a ajuda de muitas pessoas competentes
e com boa vontade, senti nesse momento que poderia voltar a ser um homem
mais realizado.