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                     Todas estas angustiantes dúvidas aumentam logo depois da cirurgia, quan-
               do despertamos da anestesia e nos confrontamos com a dura realidade de não
               conseguirmos dizer uma palavra que seja. Ainda por cima, essa é uma limita-
               ção que imaginamos ser para toda a vida. «Correu bem?», «quero água» ou «te-
               nho dores» – nenhuma destas frases nos sai; nem um som conseguimos emitir.
               A comunicação é feita por gestos e pelo que vamos escrevendo num papel. Os
               profissionais, experientes como são, entendem-nos bem; mas os familiares e ami-
               gos ficam todos a olhar para nós sem perceber o que lhes queremos transmitir,
               como se fossem surdos e não nos ouvissem. Quantas vezes desejamos não ter
               ninguém a visitar-nos!
                     Mas os dias vão passando e, a pouco e pouco, percebemos que a comu-
               nicação não é feita apenas através da voz e que, mesmo sem ela, os outros nos
               começam a entender pelos gestos, pelas nossas expressões, pelos nossos lábios.
               Quando a convalescença acaba e nos dizem que está na hora de aprender a falar
               pelo esófago e/ou pela prótese que nos colocaram, nós ganhamos outro ânimo
               – próprio de quem já passou a primeira fase desse longo processo –, mas carre-
               gados de dúvidas sobre se vamos conseguir falar de novo, se vamos ser capazes
               de reaprender, como todos os que o conseguiram. Falar pelo esófago? Falar com
               uma prótese? Como? Como acreditar numa coisa de que nunca ouvimos falar?
                     Os primeiros dias, as primeiras tentativas, os primeiros treinos são deses-
               perantes e frustrantes. Não nos sai uma letra, um som, uma palavrinha. Nada! Es-
               forçamo-nos e nada! E dizem-nos «Insista, insista, insista que vai ser capaz». Nós
               insistimos e nada; quebramos, desmoralizamos, apetece-nos desistir. Até que um
               dia, poucos dias depois de começarmos a terapia, sem sabermos porquê, sem que
               nada de diferente tenha acontecido, ouvimo-nos a dizer «Ba, be, bi, bo, bu, ta,
               te, ti, to, tu»… A partir desse momento, estaremos sempre a progredir, cada vez
               mais e melhor: novos sons, novas letras, novas palavras, novas frases. Consegui-
               mos reaprender a falar. Tinham razão os que nos diziam que seríamos capazes.
                     A pouco e pouco, ganhamos confiança e à vontade; queremos ser nós a
               ir aqui e acolá tratar dos nossos assuntos, dizer o que desejamos ou precisamos;
               queremos falar, falar, falar… dentro de casa e fora dela. Com uma voz nossa, di-
               ferente; não tão bonita como a antiga, mas nossa, que se acrescenta à nossa per-
               sonalidade; uma voz própria, como todas as outras pessoas têm uma.
                     Se foi recentemente sujeito a uma laringectomia total, acredite e confie. Vai
               ser capaz. Só precisa de uma coisa: de treinar, treinar e treinar; sem nunca desis-
               tir, sem quebrar, com ânimo e determinação, dia após dia, muitos dias, todos os
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