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uM TREVO DE QuATRO FOLHAS


                                                        Maria Lúcia Garcia Marques









                  Dediquei a minha vida profissional ao ensino da língua portuguesa e à in-
            vestigação da sua versão falada. Durante anos, fixei em gravações áudio milhares
            de horas de conversas, entrevistas, conferências, depoimentos e outros registos
            enquanto amostras do modo como os portugueses ou falantes de língua oficial
            portuguesa se exprimem oralmente. Ouvi homens e mulheres, de todas as ida-
            des, das cidades e do campo, de analfabetos a doutores, profissionais de tudo e
            mais alguma coisa, sacerdotes e militares, estudantes e donas de casa, avós, pais,
            filhos e netos… acerca de tudo a que a nossa necessidade, curiosidade, vontade
            ou desejo pudesse dar voz.
                  Pode por isso imaginar-se o que foi para mim saber que o meu marido,
            meu companheiro de todos os dias de uma vida, iria ficar sem o pouco de voz
            que ainda lhe restava depois da ablação de uma corda vocal, realizada uns anos
            antes. Tratava-se da recidiva de um carcinoma, já num estado que não deixava
            alternativa à laringectomia total. Foi um choque e uma angústia sem palavras
            que consigam descrevê-los. Mas, animados pelo espírito positivo de todos os que
            nos acudiram e acompanharam nesses momentos, aceitámos as difíceis etapas
            da cirurgia e da posterior e cautelosa convalescença. Nesses dias, naturalmente,
            a comunicação fazia-se com papel e lápis, e não sentíamos demasiado (ou, pelo
            menos, eu não sentia) a sensação de que esse seria um meio a utilizar para sem-
            pre. O médico tinha-nos assegurado que a voz natural era substituível por uma
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